sábado, abril 29, 2006
Do Óbvio para o Complexo e Polémico
A forma mais atraente de fazer filosofia moral e política, no meu entender, é partir de soluções consensuais ou quase-consensuais e tentar compreender os fundamentos morais dessa consensualiadade, de modo a abrir caminho à aplicação de princípios gerais noutras situações. Este método aproveita o melhor do racionalismo, por um lado, e da dialética socrática, por outro, estimulando ao mesmo tempo a ambição teórica e a humildade crítica. Vou tentar dar um exemplo:
Muita gente mal-disposta com a globalização propõe que se intensifique o poteccionismo no mundo chamado desenvolvido. Vejamos o caso dos têxteis chineses: anda para aí muito boa gente, e muito importante, que acha que o melhor remédio é fechar as alfândegas ou levantar barreiras robustas. Isto é moralmente saudável? Pensemos noutra situação: eu tenho uma fábrica de rolhas de cortiça e aparece de repente no mesmo mercado geográfico um concorrente que produz rolhas em fibra muito mais práticas e eficazes a preços equivalentes. Ao fim de algum tempo tenho de fechar a fábrica: não tenho condições para manter a minha quota no mercado, porque o meu produto é muito pior do que o da concorrência e o preço é pouco atraente. Esta situação é banal. E se o Estado ou a autarquia proibíssem o meu concorrente de entrar no mercado? Isto significaria que seriam ilegais quaisquer contratos entre consumidores e o meu concorrente. Razão de ser? Evitar que eu seja afastado da produção de um bem em que não consigo ser competitivo. Para me proteger de ter de mudar de actividade, penalizam-se os consumidores vedando-os de exercerem simplesmente a sua liberdade contratual. Por outras palavras: tributam-se os consumidores. Por outro lado, cilindra-se a liberdade contratual e os direitos de propriedade do meu concorrente, a quem se veda a opção por um dos usos alternativos dos seus recursos.
É exactamente isto que se passa com o proteccionismo. A resistência à globalização - nome pomposo para o alargamento da escala dos mercados devida à redução dramática dos custos de transacção e transporte - aumenta a pressão fiscal, redistribuindo recursos na sociedade para manter maus negócios. O palavreado incontinente de políticos, sindicatos e empresários pode contribuir para tornar o problema tão nebuloso quanto intractável, mas uma análise destemida torna transparente a violência política escondida na retórica pública. A mesma lógica que suporta a "protecção" contra a globalização serviria para impedir os albicastrenses de venderem mercadorias em Lisboa. Afinal, não passa daquela lógica dos interesses que se reveste de ornamentos retóricos e consegue, surpreendentemente, envenenar o espaço democrático...
Muita gente mal-disposta com a globalização propõe que se intensifique o poteccionismo no mundo chamado desenvolvido. Vejamos o caso dos têxteis chineses: anda para aí muito boa gente, e muito importante, que acha que o melhor remédio é fechar as alfândegas ou levantar barreiras robustas. Isto é moralmente saudável? Pensemos noutra situação: eu tenho uma fábrica de rolhas de cortiça e aparece de repente no mesmo mercado geográfico um concorrente que produz rolhas em fibra muito mais práticas e eficazes a preços equivalentes. Ao fim de algum tempo tenho de fechar a fábrica: não tenho condições para manter a minha quota no mercado, porque o meu produto é muito pior do que o da concorrência e o preço é pouco atraente. Esta situação é banal. E se o Estado ou a autarquia proibíssem o meu concorrente de entrar no mercado? Isto significaria que seriam ilegais quaisquer contratos entre consumidores e o meu concorrente. Razão de ser? Evitar que eu seja afastado da produção de um bem em que não consigo ser competitivo. Para me proteger de ter de mudar de actividade, penalizam-se os consumidores vedando-os de exercerem simplesmente a sua liberdade contratual. Por outras palavras: tributam-se os consumidores. Por outro lado, cilindra-se a liberdade contratual e os direitos de propriedade do meu concorrente, a quem se veda a opção por um dos usos alternativos dos seus recursos.
É exactamente isto que se passa com o proteccionismo. A resistência à globalização - nome pomposo para o alargamento da escala dos mercados devida à redução dramática dos custos de transacção e transporte - aumenta a pressão fiscal, redistribuindo recursos na sociedade para manter maus negócios. O palavreado incontinente de políticos, sindicatos e empresários pode contribuir para tornar o problema tão nebuloso quanto intractável, mas uma análise destemida torna transparente a violência política escondida na retórica pública. A mesma lógica que suporta a "protecção" contra a globalização serviria para impedir os albicastrenses de venderem mercadorias em Lisboa. Afinal, não passa daquela lógica dos interesses que se reveste de ornamentos retóricos e consegue, surpreendentemente, envenenar o espaço democrático...
Comments:
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Porquê? Acha mal que as pessoas procurem esses bens? É que se elas não os procurassem não seriam importados... E, no caso de achar mal, que tem com isso? Se bem percebo, acha que os impostos indirectos devem servir para moralizar o consumo, desincentivando a procura de certos bens. Mas que tem que ver com isso? Não valoriza a liberdade? Acha que a política fiscal deve servir para modelar as escolhas dos indivíduos? Qual o CRITÉRIO para atacar os brindes e não as rolhas? Suponho que gosta de vinho, azeite, etc... querer estender as suas preferências à esfera dos outros é que não pode ser. Faça um exercício: como seria um mundo se as nossas individuais preferências fossem o critério político? Haveria uma utopia por indivíduo. Uma sociedade livre não tolera a negação da autonomia alheia.
Não tenho "bibliografia de referência". Uma coisa é o meu livro favorito, outra coisa é o âmbito das minhas leituras. Li tantos colectivistas quanto liberais radicais. É só por isso que tenho alguma confiança, felizmente crítica, nas minhas convicções políticas.
O relativismo social, penso eu, é uma fraude: a filosofia política substantiva, pelo facto de o ser, não pode aceitar que "cada sociedade tem a sua organização política" seja uma proposição moralmente válida. É um facto que há múltiplas estruturas políticas no mundo, mas isso não significa qua sejam todas, ou sequer alguma, legítimas. Há muitos homicidas e ladrões por aí e não é por isso que é moralmente válido matar ou roubar. Numa sociedade de assassinos (há exemplos antropológicos), são todos imorais, ou não?
Outra fraude, penso eu, é a separação entre teoria (ou abstracção) e prática (ou factos). Uma teoria sem aplicações é uma aldrabice e a prática sem teoria é incompreensão. O conhecimento é uma reconstrução teórica da prática, o que influencia a prática posterior. O meu pressuposto epistemológico é pragmatista, como pode ver.
Como jurista, detesto teorias sem aplicações. Mas os argumentos "práticos" são geralmente fugas ao debate exigente. A "realidade portuguesa" tem a sua especificidade, mas essa especificidade não é uma fuga à teoria, apenas um complemento. A economia é uma ciência e as ciências não se impressionam muito com "realidades", salvo quando a realidade infirma a teoria. Não penso que tenha querido afirmar isso, caso contrário tem muito para demonstrar.
Desafio-a para resolver este puzzle filosófico:
Se somos todos criaturas morais, capazes de escolher entre a acção justa e injusta, a boa e a má, com que legitimidade moral é que certos indivíduos usam a força física (coacção) para induzir outros indivíduos a fazerem isto ou aquilo? Que espécie de moralidade permite que um indivíduo force outro a comportar-se bem ou justamente, sem admitir que ao fazê-lo está a negar a capacidade moral do seu semelhante? A coação implica a utilização do outro como instrumento, o que contraria o princípio de que nenhum ente moral pode ser utilizado como meio ao serviço de um fim alheio. Por outras palavras, a política não consentida é imoral.
Este puzzle é que me transformou num liberal radical. Politicamente. É que se me questionar sobre as obrigações morais de cada indivíduo, eu estou longe de perfilhar o egotismo: devemos muito uns aos outros. O ponto é que esses deveres são um problema individual. São "o" problema moral de cada um de nós.
O relativismo social, penso eu, é uma fraude: a filosofia política substantiva, pelo facto de o ser, não pode aceitar que "cada sociedade tem a sua organização política" seja uma proposição moralmente válida. É um facto que há múltiplas estruturas políticas no mundo, mas isso não significa qua sejam todas, ou sequer alguma, legítimas. Há muitos homicidas e ladrões por aí e não é por isso que é moralmente válido matar ou roubar. Numa sociedade de assassinos (há exemplos antropológicos), são todos imorais, ou não?
Outra fraude, penso eu, é a separação entre teoria (ou abstracção) e prática (ou factos). Uma teoria sem aplicações é uma aldrabice e a prática sem teoria é incompreensão. O conhecimento é uma reconstrução teórica da prática, o que influencia a prática posterior. O meu pressuposto epistemológico é pragmatista, como pode ver.
Como jurista, detesto teorias sem aplicações. Mas os argumentos "práticos" são geralmente fugas ao debate exigente. A "realidade portuguesa" tem a sua especificidade, mas essa especificidade não é uma fuga à teoria, apenas um complemento. A economia é uma ciência e as ciências não se impressionam muito com "realidades", salvo quando a realidade infirma a teoria. Não penso que tenha querido afirmar isso, caso contrário tem muito para demonstrar.
Desafio-a para resolver este puzzle filosófico:
Se somos todos criaturas morais, capazes de escolher entre a acção justa e injusta, a boa e a má, com que legitimidade moral é que certos indivíduos usam a força física (coacção) para induzir outros indivíduos a fazerem isto ou aquilo? Que espécie de moralidade permite que um indivíduo force outro a comportar-se bem ou justamente, sem admitir que ao fazê-lo está a negar a capacidade moral do seu semelhante? A coação implica a utilização do outro como instrumento, o que contraria o princípio de que nenhum ente moral pode ser utilizado como meio ao serviço de um fim alheio. Por outras palavras, a política não consentida é imoral.
Este puzzle é que me transformou num liberal radical. Politicamente. É que se me questionar sobre as obrigações morais de cada indivíduo, eu estou longe de perfilhar o egotismo: devemos muito uns aos outros. O ponto é que esses deveres são um problema individual. São "o" problema moral de cada um de nós.
Gostei muito do texto e concordo com as ideias que defendes. Não tenho dúvidas de que aquilo que está por detrás do proteccionismo é, regra geral, uma incapacidade de enfrentar a concorrência e os desafios da globalização. A questão é que quando alguns Estados (China por exemplo) encaram os trabalhadores não como pessoas, mas como instrumentos de produção e, nessa linha, não olham a meios para aumentar a produtividade, o que está em causa não é um problema de modelo social nosso, mas sim uma divergência filosófica elementar. Além do mais, uma indústria europeia de textêis (para dar um exemplo comum) tem as maiores dificuldades em competir com os chineses, não apenas porque poderá funcionar mal, mas porque os Estados lhes impõem regras que limitam a sua liberdade, em nome da protecção de valores que reconhecemos como válidos. O ponto é que não sei se é prudente fechar os olhos ao que se passa na China e na Índia, ao mesmo tempo que se lembra os benefícios do comércio livre (que eu defendo).
um abraço amigo
um abraço amigo
Bom comentário de um bom amigo.
A questão dos "valores" não me intimida, mas percebo o raciocínio. O que é importante é explicar que esses "valores", na medida em que induzem a protger a indústria interna, têm um custo elevado para o consumidor, que é proibido de comprar a um concorrente menos careiro. Imagine-se um caso puramente interno: uma empresa agrícola com sede em Lisboa altamente competitiva não pode instalar-se numa região remota porque isso obrigaria os produtores locais a mudarem de actividade. O problema é que essa proibição esconde um imposto sobre os compradores (muitas vezes pobres): a diferença de preços. É isso que se passa com a PAC: os agricultores europeus são subsidiados por receitas fiscais. Ou seja: o poder político obriga os contribuintes a sustentar os agricultores. É redistribuição forçada!
A questão dos "valores" não me intimida, mas percebo o raciocínio. O que é importante é explicar que esses "valores", na medida em que induzem a protger a indústria interna, têm um custo elevado para o consumidor, que é proibido de comprar a um concorrente menos careiro. Imagine-se um caso puramente interno: uma empresa agrícola com sede em Lisboa altamente competitiva não pode instalar-se numa região remota porque isso obrigaria os produtores locais a mudarem de actividade. O problema é que essa proibição esconde um imposto sobre os compradores (muitas vezes pobres): a diferença de preços. É isso que se passa com a PAC: os agricultores europeus são subsidiados por receitas fiscais. Ou seja: o poder político obriga os contribuintes a sustentar os agricultores. É redistribuição forçada!
Bom comentário de um bom amigo.
Contra-argumento da PAC: para manter um "valor" - a produção agricola na europa - os contribuintes financiam, através da coerção fiscal praticada pela administração tributária pública, subsídios de redução dos preços. Se não houvesse subsídios, poderiam comprar barato sem pagar imposto nenhum. Ou seja: para pagarem barato na europa têm de financiar os agricultores através dos impostos. É claramente redistribuição forçada e proteccionaismo primário.
Contra-argumento da PAC: para manter um "valor" - a produção agricola na europa - os contribuintes financiam, através da coerção fiscal praticada pela administração tributária pública, subsídios de redução dos preços. Se não houvesse subsídios, poderiam comprar barato sem pagar imposto nenhum. Ou seja: para pagarem barato na europa têm de financiar os agricultores através dos impostos. É claramente redistribuição forçada e proteccionaismo primário.
Bom comentário de um bom amigo.
Contra-argumento da PAC: para manter um "valor" - a produção agricola na europa - os contribuintes financiam, através da coerção fiscal praticada pela administração tributária pública, subsídios de redução dos preços. Se não houvesse subsídios, poderiam comprar barato sem pagar imposto nenhum. Ou seja: para pagarem barato na europa têm de financiar os agricultores através dos impostos. É claramente redistribuição forçada e proteccionaismo primário.
Contra-argumento da PAC: para manter um "valor" - a produção agricola na europa - os contribuintes financiam, através da coerção fiscal praticada pela administração tributária pública, subsídios de redução dos preços. Se não houvesse subsídios, poderiam comprar barato sem pagar imposto nenhum. Ou seja: para pagarem barato na europa têm de financiar os agricultores através dos impostos. É claramente redistribuição forçada e proteccionaismo primário.
Mais uma nota: imaginemos que os chineses são de facto "meros instrumentos de produção", o que, sem defender as atrocidades do regime chinês, é talvez um pouco hiperbolístico. A verdade é que se assim fosse nós poderíamos contar com preços mais baratos. E como a simples lei da vantagem comparativa ensina que os chineses não podem produzir tudo, ainda que em termos absolutos produzam tudo mais barato, os europeus não ficariam sem emprego. Teriam é salários muito mais baixos. Mas a baixa dos salários seria compensada pela baixa dos preços. Em termos reais, de poder de compra, tudo na mesma. Ou melhor: tudo melhor porque a reordenação da produção estimulada pela concorrência aprofundaria a especialização e divisão do trabalho produtivo na economia global, com benefícios imediatos de qualidade, diversidade e preço para os consumidores.
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