quinta-feira, abril 06, 2006

 

Ensinar Direito em Portugal

Reagindo ao estímulo provocado por cometário anónimo ao "post" de Nuno Garoupa sobre o ensino do direito, vou tentar resumir os "três pilares" da "hegemonia cultural" da docência do direito em Portugal.

I. Um Professor de direito português não pode ser avaliado por critérios internacionais, como o número de publicações em revistas reputadas ou de convites para leccionar cursos no estrangeiro porque: a) o direito é por natureza uma disciplina "local", condicionada pela língua, cultura e tradição política de um povo; b) a tradição jurídica portuguesa, tal como reproduzida e burilada nos trabalhos doutrinários, é algo de único, é um traço distintinto da diferencialidade intelectual portuguesa, inacessível para um estrangeiro; c) um Professor de direito sabe tudo sobre todas as matérias relevantes e não precisa de ser julgado. (De acordo com um reputado dirigente da política de investigação em Portugal, com quem discuti o assunto pessoal e informalmente, este último é "o" argumento utilizado pelos "representantes" dos docentes de direito nas negociações de pacotes de reforma pedagógica e científica).

II. Um aluno de direito português não tem de saber mais do que aquilo que a faculdade de direito está preparada para lhe ensinar. Não deve estudar economia na faculdade de economia com professores doutorados em Harvard ou na LSE, porque há um sábio mestre que ensina economia política há cinco décadas, publicou um manual e sabe tudo o que há para saber sobre a matéria. Não deve estudar ciência política com um politólogo doutorado em Oxford ou Chicago, porque o professor de direito constitucional publicou há três décadas o primeiro tomo do primeiro volume de um curso de ciência política em que classificou todos os regimes, sistemas e formas de governo políticos, que é de dizer tudo aquilo que um jurista precisa de saber sobre o assunto; não pode ousar migrações conceptuais interdisciplinares, ainda que cautelosas, porque é uma heresia atacar o pedigree da intelligentsia jurídica. Finalmente, aquilo que um estudante de direito não deve saber é que quanto menos souber sobre assuntos "não-jurídicos", menos aborrecimentos intelectuais há para os mestres e mais empregos há para os candidatos a mestres, especialmente aqueles que querem dedicar pouco tempo a actividades tão pouco atraentes do ponto de vista financeiro como ensinar e investigar.

III. Quem tem pretensões académicas deve tomar em linha de conta que obviamente é absurso doutorar-se no estrangeiro, especialmente nos Estados Unidos. Os que se doutoram nas universidades mais reputadas sãos uns asnos, uns ignorantes e uns inúteis ao progresso da Ciência do Direito. Eles não sabem nada de direito. Eles doutoram-se antes dos 40/50 anos, em pleno estado de imaturidade intelectual. Eles não citam bibliografia em cinco línguas. Eles não escrevem páginas suficientes para demonstrar consideração pelos monumentos doutrinários que os precederam. Eles ousam a criatividade, como se fosse possível que o mundo das ideias sobre o direito não tivesse acabado com aquela sebenta publicada no ano passado. Não: eles são uns insolentes e uns imprestáveis. Quem quiser ensinar direito tem de prestar homenagem à exceptional singularidade da cultura jurídica portuguesa, esse legado carreado pelos professores de direito desde tempos imemoriais!

Este material empírico, produto da minha observação directa e de conversas com outros observadores internos, é um rico estímulo a um trabalho sobre rent-seeking nas faculdades de direito. Mas é também, e isso é muito grave, uma parte da explicação da atrofia cultural e intelectual do capital humano ao serviço da justiça portuguesa. A um nível mais profundo, ocorre recordar que os juristas são, permitam-me este termo marxizante, a "classe dominante" por excelência em Portugal!

Comments:
Gonçalo,
As coisas são reproduzidas aqui no Brasil de forma similar, ou quase, como você expôs no post.
Ocorre que existe uma reação forte contra este tipo de postura. Não sei se em Portugal, ocorreu algum movimento de crítica ao posicionamento conservador e dogmático dos doutos das faculdades de Direito?!
No Brasil, no início dos anos 90, as Faculdades foram sacudidas com os incendiários do Direito Alternativo, que pelo menos suscitaram o debate sobre o direito que era ensinado "errado"...
Percebo você desesperançoso.
Tudo que é sólido desmancha no ar... (Marx)
Um abraço,
Pedro Nelito
 
Caro Pedro,

Sou crítico mas tenho esperança!

Discordo de muitas coisas, sob o ponto de vista intelectual, dos chamados "crítical legal studies" ou "uso alternativo do direito", mas sem dúvida que o movimento agitou o ensino do direito e prestou um notável contributo. Basta ver a famosa polémica de Duncan Kennedy com "o sistema" ou os escritos de Roberto Magabeira Unger (seu compatriota). O mesmo se pode dizer, do outro lado da barricada em termos ideológicos, da análise económica do direito.

São movimentos que obrigam os juristas a um esticão intelectual e cultural. Isso é muito positivo!

Abr.
 
;)
 
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Boa análise das faculdades de direito portuguesas e do pensamento dominante nas mesmas.
 
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