terça-feira, junho 06, 2006

 

A proprósito de JBMachado: Uma nota (hermética) sobre o "Positivismo Jurídico"

Outro dia, folheava o livro de Introdução ao Direito do saudoso Porfessor João Baptista Machado relembrando a influência que exerceu sobre mim no meu primeiro ano de curso, apesar do seu estilo hermético, a sua por vezes gritante falta de coerência e sobretudo o carácter intelectualmente esquemático da sua obra, que reflecte um pensamento inacabado e muitas vezes intuitivo. Apesar de tudo isto, trata-se de um belo livro de um dos grandes cérebros jurídicos que passaram pela universidade portuguesa - um homem que, aliás num contexto pessoal muito adverso, mostrou uma sabedoria, criatividade e ocasional genialidade que o transformam num pensador de primeira ordem, capaz de impressionar qualquer audiência nacional ou estrangeira.

Impressionou-me uma passagem, creio que no segundo capítulo, onde JBM diz que não há direito sem "positividade", por um lado, mas que o "sentido" - ou a essência - do direito é a justiça. Há aqui a percepção de uma ambiguidade que escapou a muita intelligentsia jusfilosófica nacional, até aquela que é citada mesmo quando não lida porque ilegível, e que JBM detectou: todo o direito é positivo, ou não é direito. Mas a ambiguidade regressa quando junta a justiça, por chocar que o direito possa só ser positivo ou que a sua positividade o distinga de outros "complexos sociais normativos".

A ambiguidade é tola, digo eu. Mas claro que, em princípio, o tolo sou eu. Os juristas dão como certa a diferenciação do direito de outras ordens sociais normativas - como a moral positiva, a religião positiva e as normas de trato social. E depois procuram diferenciar "o jurídico" com um valor - a justiça. Infelizmente, julgo tratar-se de um vício espontâneo de jurista: é que não só a justiça é um problema (senão "o" problema) moral, como a vaga filosófica pós-rawlsiana bem demonstra, como a especificidade do direito está na sua positividade. É que o direito é o único sistema de regras em que a validade depende das fontes enão dos méritos - da "positividade" e não da "verdade". Uma regra moral continua a sê-lo mesmo que não tenha qualquer papel efectivo numa certa sociedade e a sua validade depende de ser moralmente boa, não de ser reconhecida como obrigatória. Pelo contrário, as regras jurídicas são jurídicas porque regulam efectivamente - são praticadas - e porque são reconhecidas como obrigatórias. Daqui resultam pelo menos duas consequências: uma regra pode ser ao mesmo tempo jurídica e moral, embora a sua validade jurídica e moral tenham conteúdos radicalmente diferentes, e muitas regras a que teimamos em negar estatuto jurídico são obviamente regras jurídicas - por exemplo, a regra, pelo menos vigente nos meios rurais, segundo a qual se deve tirar o chapéu na igreja ou a regra segundo a qual se deve cumprimentar os vizinhos.

Não vou explicar aqui porque é que julgo que é epistemologicamente arbitrário excluir certas regras sociais do "conceito" de direito. Diria apenas que resulta de uma confusão tola entre Estado e direito, que conduz muita gente a desconfiar da juridicidade do direito internacional ou canónico, sem se aperceber que cometem aquele erro grosseiro - dito "cientista" - de manipular a experiência para manter uma má teoria e um mau campo conceptual.

Termino com uma afirmação que pode provocar alguns dissabores na cultura jurídica "popular": todo o direito é positivo e os positivistas tinham razão. Acrescento apenas que muitos anti-positivistas não sabem três coisas sobre o positivismo: primeiro, que o positivismo consolidado não afirma, antes nega, que todo o direito seja assitido pela coerção organizada ou mesmo difusa; segundo, que o positivismo jurídico não tem patavina que ver com o positivismo filosófico, embora tenham existido escolas jurídicas positivistas neste último, e bem diverso, sentido; terceiro, que no mundo algo-americano considera-se acabado o debate sobre o positivsmo com vitória de Hart e seus seguidores. E nem um anti-positivista (sê-lo-á?) tão moderado como Dworkin tem hoje uma falange de adeptos significativa. Quanto a gente como John Finnis, embora gente brilhante, só se ouvem a si próprios. Exemplos que a cultura jurídica continental, amarrada ao casamento paradoxal entre legalismo e "anti-positivismo", deveria meditar!

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