segunda-feira, julho 03, 2006

 

Humanismo de Segundo Grau: Tortura e Prova

Uma objecção clássica ao utiliatrismo é a de que mesmo que a tortura não seja um bom meio para descobrir a verdade, a fabricação de culpados satisfaz geralmente os sentimentos punitivos do público. Os utilitaristas indirectos, mais sofisticados, replicavam que a promoção da utilidade se faz em termos de regras e não de actos, de modo que o que interessa é saber se uma regra aumente a utilidade no decurso da sua vigência e não no momento da sua aplicação. Uma coisa é certa: os utilitaristas não saíram em defesa da tortura porque não lhes passou pela cabeça que pudesse haver uma justificação moral para torturar.
O campeão das liberdades cívicas e professor na Harvard Law School Alan Dershowitz, no entanto, parece ter uma opinião diferente. Segundo os media americanos - é só googlarem! - Dershowitz admite a inevitabilidade da tortura nestes tempos de criminalidade organizada à escala global e propõe a aplicação das regras sobre obtenção da prova aos casos de "prova através de tortura". Dershowitz quer, segundo William Schulz, Director Executivo da Amnistia Internacional, "brutality warrants," "testilying warrants" and "prisoner rape warrants".
Dershowitz, como se pode ver em http://www.alandershowitz.com/, responde com uma eloquência de jurista: "If torture is, in fact, being used, and / or would, in fact, be used in an actual ticking bomb terrorist case, would it be normatively better or worse to have such torture regulated by some kind of warrant, with accountability, record-keeping, standards and limitations. This is an important debate, and a different one from the old, abstract Benthamite debate over whether torture can ever be justified. It is not so much about the substantive issue of torture, as it is over accountability, visibility and candor in a democracy that is confronting a choice of evils".
Isto porque "I believe that at least moderate forms of non-lethal torture are in fact being used by the United States and some of its allies today. I think that if we ever confronted an actual case of imminent mass terrorism that could be prevented by the infliction of torture, we would use torture (even lethal torture) and the public would favor its use. Whenever I speak about this subject, I ask my audience for a show of hands on the empirical question: "how many of you think that non-lethal torture would be used if we were ever confronted with a ticking bomb terrorist case?" Almost no one dissents from the view that torture would in fact be used, though there is widespread disagreement about whether it should be used. That is also my empirical conclusion".
A tortura é uma coisa sinistra e julgo que nada a pode justificar. A dicotomia liberdade/segurança, sobre a qual repousam as angústias morais preferidas do público, é uma falsa dicotomia. A minha opinião, neste ponto, é irretractável. No entanto, agradeço a Dershowitz chamar a atenção para um importante papel social dos juristas: quando a filosofia pública se distancia da boa filosofia, é necessário sujar as mãos. Regular a tortura - ou outras coisas menos más, mas ainda assim muito más... - pode ser melhor do que insistir no radicalismo (proprio sensu) filosófico.
O juíz americano Powel afirmava que "if you can think about something that is related to something else without thinking about the thing to which it is related, then you have the legal mind". O campeão das liberdades cívicas está disposto a praticar o humanismo de segundo grau, mesmo que para isso tenho de abandonar o palco bizantino da coerência. A democracia real não é, nem poderá vir a ser, um debate intelectual arbitrado pelo critério da Verdade. Mas pode vir a ser uma luta diária pela dignificação do ser-humano.

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