quarta-feira, maio 17, 2006

 

O que é a Eficiência?

Na sequência de discussões anteriores, minhas ou de NGaroupa, com vários bloggers, achei que era conveniente fazer uma brevíssima nota sobre este tema. chamo a atenção para o facto de que não sou especialista na matéria e tenho credenciais reduzidas. Apesar disso, e convidando NGaroupa a corrigir eventuais erros, alguns apontamentos:

Os economistas distinguem "questões de eficiência" de "questões de equidade", indicando que as primeira se referem ao modo como os recursos sociais escassos são utlizados e as segundas ao modo como estão distribuídos na sociedade. As "questões de eficiência", dizem os economistas, são moralmente neutrais, porque não afectam a distribuição de recursos: o que se pretende é saber se o cabaz de recursos escassos da sociedade está a ser maximizado, está a produzir o valor económico máximo possível, dada uma certa distribuição inicial. Esta neutralidade é conseguida à custa da introdução de uma restrição na manipulação de variáveis económicas por razões de eficiência: ninguém pode ficar pior do que estava antes da intervenção, ninguém pode ficar "expropriado". Repare-se que é isso mesmo que acontece no mercado, onde as pessoas trocam volutariamente recursos porque beneficiam individualmente da troca. A conclusão, portanto, é que de facto as "questões de eficiência" são neutrais relativamente à distribuição inicial de recursos, o que não significa que sejam moralmente neutrais "tout court" (lembrem-se do princípio da diferença de Rawls). Esta ideia da eficiência como maximização restringida a uma certa distribuição foi expressamente elaborada pelo economista e sociólogo italiano Vilfredo Pareto. Há noções menos austeras de eficiência, que no fundo já são sensíveis a aspectos redistributivos (por motivos de eficiência!) e que são na prática as mais utilizadas, mas na literatura económica o paretianismo é uma espécie de vaca sagrada.

Um exemplo muito simples: uma pessoa atravessa o deserto com uma sede desesperante e vê um camelo abandonado carregado de vasilhas de água. Observa que o camelo tem dono e provavelmente fugiu do acampamento. Ele estaria disposto a para uma fortuna pela água, uma fortuna que o dono certamente aceitaria, mas não pode agora econtrá-lo para encetar negociações. Decide então beber a água à socapa. O dono do camelo entretanto chega, há uma zaragata e acaba tudo em tribunal a discutir se o dono do camelo tem ou não direito a uma indemnização pela água bebida sem consentimento. Uma decisão eficiente reconhece que a água foi valorizada ao deslocar-se das mãos do dono do camelo para as do peregrino e limita-se a fixar uma indemnização que permita compensar o dono do camelo pelo facto do seu património ter sido diminuído sem consentimento. O resultado final é aterradoramente simples: ambas as partes ficam melhor, o que significa que o recurso escasso "água" foi maximizado. Eis um exemplo de uma composição "eficiente" de um litígio.

Não se pode confundir eficiência com eficácia, como se vê fazer tantas vezes. A eficácia descreve a adequação de um meio para alcançar um fim. Por exemplo: a pena de morte ser ou não ser um meio eficaz para reduzir a quantidade de homicídios. No entanto, a eficiência preocupa-se com a alocação dos recursos: mesmo que seja eficaz, não será a pena de morte excessivamente cara? Quando se ouve, por exemplo, que "a incrimninação do aborto é um meio ineficiente de protecção da vida intra-uterina", está-se a confundir alhos com bugalhos.

Grande parte da análise económica em geral, e a do direito em especial (AED), preocupa-se com a descrição das condições segundo as quais a trocalivre e espontãnea é eficiente e aquelas em que não é. Estes últimos casos, têm a designação técnica de "falhas de mercado". A AED recomenda a correcção de falhas de mercado através da manipulação deuma variável económicamente poderosa: as normas jurídicas. Isto não torna a AED uma coisa "neoliberal" porque, como insisti muitas vezes, a eficiência (paretiana) procura ser neutral.

Infelizmente, na minha opinião a intervenção por razões de eficiência é uma ilusão, que se baseia na tentativa de descrever a interacção de forças económicas como os físicos descrevem a interacção de forças físicas: como um sistema que pode ser descrito por relações funcionais constantes entre variáveis. Como na economia, na sociedade, tudo é variável, as medições de eficiência são contingentes a um levantamento de dados limitado no tempo. O que é eficiente hoje pode deixar de o se amanhã, se um único indivíduo, por exemplo, mudar de preferências. A engenharia social não pode jamais ter a precisão ou o êxito da engenharia electroténcica, civil ou química. Por outro lado, noções não paretianas de eficência levantam tipicamente delicadas questões de filosofia moral e política que a análise económica negligencia. Mas estes são debates mais profundos que terão de ficar adiados.

Comments:
Gostei muito do texto.
Quanto ao camelo. Vou fazer um comentário propositadamente superficial (sobretudo nos exemplos simplistas que dou), apenas para servir de base à discussão.
Há algumas eventuais falácias no raciocínio.
A primeira é a conclusão segundo a qual o dono do camelo fica melhor. Por definição não fica: fica igual. Se ele apenas é ressarcido do dano - e a in-demni-zação tem por limite o dano -, isto é da diminuição do seu acervo patrimonial, então a indemnização apenas o recoloca no estado em que estava, e não num estado melhor.

A segunda tem a ver com a “patrimonialização” de determinadas realidades. De acordo com o exemplo dado, se o dono do camelo se preparasse para despejar as vasilhas no rio, não teria direito a nada. A conduta do sedento seria “livre”.
Isto vale por dizer que é legítima a ocupação de casas devolutas, admitindo-se que o proprietário as não quer afectar a um fim (ou enquanto não as quer afectar a um fim), desde que não se efectuassem malfeitorias.
Do mesmo modo, um qualquer artista excêntrico e famoso seria livre de andar a pintar as casas com murais (valiosos), já que as suas pinturas valorizariam as casas, sem que os donos tivessem direito a uma indemnização - restauração natural, com a reposição do estado anterior.

Dar cobertura às violações da propriedade alheia apenas por razões de eficiência, desconsiderando a justa composição do litígio - dar (reconhecer) a cada um o que lhe é devido (o que é seu) -, talvez faça sentido para um economista. Mas não o fará para um jurista.
Um juiz que decida o caso dos camelos fazendo apelo à justa composição do litígio  lançando mão de institutos como a “acção directa”  obterá o mesmo resultado que aqule faça apelo à eficiência como critério da sua decisão? Talvez.
E não obtiver, não produziu nada? (já que, para NGaroupa, o produto é a decisão jurisdicional eficiente)

Por falta de tempo, paro por aqui.
 
Bom comentário, que suscita reacção.

1) Crítica correcta ao exemplo. Houve um lapso da minha parte. A indemnização compensatória assegura o índice paretiano mas não deixa a vítima da agressão melhor: deixa-o indiferente. A sua única função é repor a distribuição inicial de recursos.

2)Quanto aos exemplos de ocupação, a resposta, do ponto de vista da AED, é a seguinte: se eu não valorizo um bem que o direito me atribui, então a subtracção do bem ou agressão do bem não têm um custo para mim. Não é preciso compensar, porque não houve uma expropriação de valor. Repare que em economia os bens são "valores" e não "objectos": a distribuição de recursos não é afectada se um bem se desloca de um património para outro sem prejuízo para o proprietário originário.

3) O exemplo das pinturas é sofisticado e estimulante. O seu raciocínio está errado, de um ponto de vista de AED porque confunde valor de troca com valor de uso. Se um artista famoso pintar casas, de duas uma: ou o proprietário não gosta das pinturas e portanto valoriza menos a casa; ou gosta das pinturas e não tem de ser indemnizado, porque o comportamento do pintor melhorou a posição de ambos: o pintor gosta de pintar e o proprietário gosta das pinturas. E se o proprietário não gostar das pinturas mas outros gostam muito e a casa valoriza-se, a preços de mercado, muito? Também não há prejuízo se a indemnização for inferior à valorização.

4)Outro problema é a questão de saber como se ditingue a "justa composição" da "composição eficiente". Há quem defenda, nomeadamente na Universidade de Chicago, que muito do direito positivo pode ser explicado como uma aproximação grosseira, não-científica, a padrões de eficiência. Há aqui um átomo de verdade, mas como caso geral não me parece convincente. Portanto, a resposta à questão de saber como seria, do ponto de vista económico, a resolução do caso do camelo de uma forma "justa", no sentido de conforme ao direito vigente (todo ele e não apenas a lei), é simplesmente a de que pode ser ou não eficiente. A acção directa ou o estado de necessidade provam demais porque se o peregrino fosse muito pobre e não pudesse dar nada pela água, essas claúsulas poderiam protegê-lo, mas violar-se-ia o padrão paretiano porque a compensação integral não seria possível. Eficiência não é o mesmo que proporcionalidade, que fique bem claro: há zonas de intersecção mas conceptualmente são coisas bem diferentes.

5) Finalmente, não esquecer que a AED, embora possa explicar certas regras ou institutos, é fundamentalmente uma disciplina crítica: pretende avaliar o direito positivo e não interpretá-lo. Os juristas são educado para aplicar o direito e até certo ponto concederem-lhe o benefício da "justeza". Mas o economista ou o filósofo moral olham para o direito como um objecto de especulação normativa crítica: É bom? É justo? É correcto? É eficiente? Ao economista interessa muito mais o juiz enquanto "político do direito" do que equanto intérprete. Já se vê porque é que a AED entrou mais facilmente nos países da Commmon Law...
 
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